Num país onde a audiência de programas televisivos como Ratinho e Leão Livre supera a da novela "Os Maias", obra de Eça de Queiroz, adaptada por Maria Adelaide Amaral e levada ao ar pela rede Globo, pode-se dizer que Sílvio Santos, com seu Show do Milhão, pelo menos tem prestado um bom serviço ao país, na medida em que seus telespectadores, na pior das hipóteses, têm acesso a informações bem mais úteis e sadias que aquelas apresentadas pelos senhores Ratinho e Leão.
As informações que podem ser obtidas ao assistir o Show de Sílvio Santos não se restringem às respostas - quando corretas, fornecidas pelos participantes do programa. Estas estão dentre as que considero sadias. A informação mais importante e mais útil é dada através do programa, que possibilita uma reflexão acerca da miséria intelectual das classes menos favorecidas que ali se expõem em troca de dinheiro, na esperança da realização de algum sonho. Na esmagadora maioria, o sonho da casa própria.
Há poucos dias fiquei comovida com uma participante do programa em questão. Tratava-se de uma jovem de 15 anos, natural de Ilhéus, na Bahia, aluna do segundo ano do ensino médio de uma escola pública. A moça disse ao apresentador do programa que a mãe comprara a revista do SBT enviando o cupom correspondente em seu nome. A filha deveria ser considerada o membro da família mais preparado intelectualmente para tal empreitada. Na platéia o pai, motorista de táxi, fitava a filha com orgulho. A moça, quando indagada sobre a razão de sua presença no programa respondeu que seu único e grande sonho era pagar um tratamento para a mãe, acometida de uma doença que está lhe paralisando as pernas. Nem ela nem o pai souberam dizer qual a doença, nem tinham idéia do preço do tratamento.
As primeiras perguntas, como sabem os que já assistiram o Show do Milhão, são as mais fáceis possíveis. Para meu espanto, a jovem do 2º ano do Curso Médio quase nada sabia. Queimou todas as suas possibilidades pedindo cartas, pulando as perguntas e pedindo ajuda aos universitários. Por sorte, com toda essa ajuda, chegou, se não me engano, aos 30.000 reais. Daí para frente, era tudo ou nada. Eis então que a pergunta apresentada era a seguinte:
Machado de Assis escreveu: a) O Auto da Compadecida; b) Quincas Borba; c) A Bela Adormecida; d) esta alternativa não consigo me lembrar. Como não tinha mais nada a que nem a quem recorrer a garota disse que a obra de Machado era A Bela Adormecida.
Sílvio Santos deu todas as dicas possíveis para que a moça percebesse que era Quincas Borba, mas a moça disse que estava convencida da resposta, ou seja, do chute, que estava dando. O que mais me comoveu nessa história toda, não foi o fato de que a moça saiu dali, talvez, sem o dinheiro suficiente para o tratamento da mãe. Ou talvez tenha, pois nem ela nem o pai tinham idéia do valor necessário para a realização do sonho da filha.
O mais comovente nessa história é a certeza de que vivemos na ilusão de um Estado Democrático de Direito. Num eterno estado de coisas nem democrático - porque não é justo, nem provido do mínimo direito a uma educação decente o suficiente que propicie a uma aluna do 2º ano do curso médio de uma escola pública o conhecimento de que um tal Machado de Assis não teria escrito a Bela Adormecida. Sim, porque pior do que não saber que Quincas Borba é uma obra de Machado de Assis é pensar que A Bela Adormecida seria uma obra dele.
Pergunto ao leitor: um aluno que, pelo jeito, nunca ouviu falar em Machado de Assis terá a oportunidade de chegar aos bancos da Universidade? Fico pensando se aquela jovem de Ilhéus conhece ao menos Jorge Amado, baiano como ela, e mais, que usou a terra natal da moça como cenário de alguns de seus livros. Jovem da Bahia, terra de ACM. Seria este conhecido por ela e seus familiares? Creio que sim. Bela jovem de Ilhéus, adormecida pela ignorância provocada pela falta de qualidade da educação pública no país.
Triste povo brasileiro adormecido que não se compadece com os excluídos da sociedade. Infeliz população que passivamente assiste ao show de um presidente que governa soberano através de Medidas Provisórias. O que era para ser exceção virou regra.
Triste da nação que assiste passivamente as atitudes de um Legislativo que legisla como quem dança conforme a música; que assiste sem a mínima consciência a tentativa de se calar o Ministério Público sem analisar o significado e as conseqüências de tal medida; de um povo que assiste de modo inerte o quanto está hoje comprometida a independência do Poder Judiciário. Inércia só compete ao juiz, que precisa ser provocado para realizar a justiça. Ao cidadão compete ser responsável, fazendo valer seus direitos e, antes de tudo, cumprindo seus deveres. Responsabilidade, pressuposto da cidadania, significa responder pelos atos praticados. Só podemos responder por aquilo que conhecemos. A moça não pode responder as perguntas de Sílvio Santos porque é mais uma vítima de um sistema cruel.
Mais cruel é saber que no show do Brasil do terceiro milênio a classe média continua no papel de mera espectadora. Justamente a classe que deveria ser a mais responsável. Porque nem é pobre nem é rica. É a classe que não tem identidade. Tem apenas ilusão: a de viver numa plena democracia. Democracia, decididamente, não é um país onde poucos têm muito e milhões passam fome.
Triste de um povo que vive numa sociedade dividida em classes sociais das quais a média não se organiza, mas assiste passivamente ao show de competência dado pelo poder de organização dos presos, comandados pelo PCC, uma organização criminosa. Vide os presídios de São Paulo, que realizaram 29 rebeliões simultâneas, mobilizando 27.000 detentos, o que serve para nos alertar sobre o fato de que o crime está mais organizado do que pensamos.
Infeliz do povo que não percebe que o show está apenas começando. O show dos milhões, que não conhecem Machado de Assis, mas que começam a se organizar, ensinando às classes mais favorecidas que uma sociedade egoísta, fundada no individualismo só tende a piorar. O jogo do Show do Milhão, pelo menos, possibilita a alguns a realização do sonho da casa própria. O jogo da vida, muito mais complexo, não tem possibilitado nem a esperança de um mundo mais digno para nossos filhos. Em tempo: Aquele tal de Machado de Assis termina seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas dizendo " Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
Maria Luiza Tonelli - Professora
As informações que podem ser obtidas ao assistir o Show de Sílvio Santos não se restringem às respostas - quando corretas, fornecidas pelos participantes do programa. Estas estão dentre as que considero sadias. A informação mais importante e mais útil é dada através do programa, que possibilita uma reflexão acerca da miséria intelectual das classes menos favorecidas que ali se expõem em troca de dinheiro, na esperança da realização de algum sonho. Na esmagadora maioria, o sonho da casa própria.
Há poucos dias fiquei comovida com uma participante do programa em questão. Tratava-se de uma jovem de 15 anos, natural de Ilhéus, na Bahia, aluna do segundo ano do ensino médio de uma escola pública. A moça disse ao apresentador do programa que a mãe comprara a revista do SBT enviando o cupom correspondente em seu nome. A filha deveria ser considerada o membro da família mais preparado intelectualmente para tal empreitada. Na platéia o pai, motorista de táxi, fitava a filha com orgulho. A moça, quando indagada sobre a razão de sua presença no programa respondeu que seu único e grande sonho era pagar um tratamento para a mãe, acometida de uma doença que está lhe paralisando as pernas. Nem ela nem o pai souberam dizer qual a doença, nem tinham idéia do preço do tratamento.
As primeiras perguntas, como sabem os que já assistiram o Show do Milhão, são as mais fáceis possíveis. Para meu espanto, a jovem do 2º ano do Curso Médio quase nada sabia. Queimou todas as suas possibilidades pedindo cartas, pulando as perguntas e pedindo ajuda aos universitários. Por sorte, com toda essa ajuda, chegou, se não me engano, aos 30.000 reais. Daí para frente, era tudo ou nada. Eis então que a pergunta apresentada era a seguinte:
Machado de Assis escreveu: a) O Auto da Compadecida; b) Quincas Borba; c) A Bela Adormecida; d) esta alternativa não consigo me lembrar. Como não tinha mais nada a que nem a quem recorrer a garota disse que a obra de Machado era A Bela Adormecida.
Sílvio Santos deu todas as dicas possíveis para que a moça percebesse que era Quincas Borba, mas a moça disse que estava convencida da resposta, ou seja, do chute, que estava dando. O que mais me comoveu nessa história toda, não foi o fato de que a moça saiu dali, talvez, sem o dinheiro suficiente para o tratamento da mãe. Ou talvez tenha, pois nem ela nem o pai tinham idéia do valor necessário para a realização do sonho da filha.
O mais comovente nessa história é a certeza de que vivemos na ilusão de um Estado Democrático de Direito. Num eterno estado de coisas nem democrático - porque não é justo, nem provido do mínimo direito a uma educação decente o suficiente que propicie a uma aluna do 2º ano do curso médio de uma escola pública o conhecimento de que um tal Machado de Assis não teria escrito a Bela Adormecida. Sim, porque pior do que não saber que Quincas Borba é uma obra de Machado de Assis é pensar que A Bela Adormecida seria uma obra dele.
Pergunto ao leitor: um aluno que, pelo jeito, nunca ouviu falar em Machado de Assis terá a oportunidade de chegar aos bancos da Universidade? Fico pensando se aquela jovem de Ilhéus conhece ao menos Jorge Amado, baiano como ela, e mais, que usou a terra natal da moça como cenário de alguns de seus livros. Jovem da Bahia, terra de ACM. Seria este conhecido por ela e seus familiares? Creio que sim. Bela jovem de Ilhéus, adormecida pela ignorância provocada pela falta de qualidade da educação pública no país.
Triste povo brasileiro adormecido que não se compadece com os excluídos da sociedade. Infeliz população que passivamente assiste ao show de um presidente que governa soberano através de Medidas Provisórias. O que era para ser exceção virou regra.
Triste da nação que assiste passivamente as atitudes de um Legislativo que legisla como quem dança conforme a música; que assiste sem a mínima consciência a tentativa de se calar o Ministério Público sem analisar o significado e as conseqüências de tal medida; de um povo que assiste de modo inerte o quanto está hoje comprometida a independência do Poder Judiciário. Inércia só compete ao juiz, que precisa ser provocado para realizar a justiça. Ao cidadão compete ser responsável, fazendo valer seus direitos e, antes de tudo, cumprindo seus deveres. Responsabilidade, pressuposto da cidadania, significa responder pelos atos praticados. Só podemos responder por aquilo que conhecemos. A moça não pode responder as perguntas de Sílvio Santos porque é mais uma vítima de um sistema cruel.
Mais cruel é saber que no show do Brasil do terceiro milênio a classe média continua no papel de mera espectadora. Justamente a classe que deveria ser a mais responsável. Porque nem é pobre nem é rica. É a classe que não tem identidade. Tem apenas ilusão: a de viver numa plena democracia. Democracia, decididamente, não é um país onde poucos têm muito e milhões passam fome.
Triste de um povo que vive numa sociedade dividida em classes sociais das quais a média não se organiza, mas assiste passivamente ao show de competência dado pelo poder de organização dos presos, comandados pelo PCC, uma organização criminosa. Vide os presídios de São Paulo, que realizaram 29 rebeliões simultâneas, mobilizando 27.000 detentos, o que serve para nos alertar sobre o fato de que o crime está mais organizado do que pensamos.
Infeliz do povo que não percebe que o show está apenas começando. O show dos milhões, que não conhecem Machado de Assis, mas que começam a se organizar, ensinando às classes mais favorecidas que uma sociedade egoísta, fundada no individualismo só tende a piorar. O jogo do Show do Milhão, pelo menos, possibilita a alguns a realização do sonho da casa própria. O jogo da vida, muito mais complexo, não tem possibilitado nem a esperança de um mundo mais digno para nossos filhos. Em tempo: Aquele tal de Machado de Assis termina seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas dizendo " Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
Maria Luiza Tonelli - Professora