...nossa época é a mais desorientada dos últimos tempos em matéria de valores, princípios, normas de conduta, distinção entre o certo e o errado. E esta desorientação geral e enciclopédica responde pelas confusões, pela insegurança e incapacidade de discernimento que estão na origem das más condutas tanto na vida coletiva quanto na vida pessoal
Generalizou-se a impressão de que a nossa época seria particularmente imoral e corrupta, com tantos escândalos de conduta explodindo todos os dias e em todo lugar. Um breve recorrido histórico mostra que não é assim.
Na antiguidade, ao final do império romano, nenhuma instituição ficou em pé, todas solapadas pelo maior tsunami nunca visto de corrosão e depravação dos costumes. Tudo era movido à propina, na administração, no senado, nos tribunais, no exército, na religião.
Na Renascença, período de transição da idade média para os tempos modernos, países como a Itália eram dominados por uma orgia de devassidão e violência, da qual nem a Igreja escapou, com o honorabilíssimo papa Alexandre VI, da família Borgia, e seus filhos César e Lucrecia, refinados intrigantes e assassinos de implacável crueldade.
Não falemos na Espanha, Portugal e Holanda ao tempo das navegações e domínio dos novos territórios no Oriente e nas Américas.
Não mencionemos o tráfico de escravos e o elenco de abominações alimentadas à sombra do comércio negreiro.
Chegando mais perto de nossos dias, poucos levam em conta que ao final do século XIX, o país campeão da desordem moral e da violência foram os Estados Unidos.
Nunca houve frouxidão moral coletiva maior do que a que devastou os USA quando da descoberta do petróleo e da construção das grandes ferrovias leste-oeste. E todos nós tomamos conhecimento, pelo cinema, do que foi a onda de gangsterismo que dominou cidades como Chicago durante a Lei Seca.
Claro que tudo isso mudou. O velho fundo puritano da nação se impôs com força, o Judiciário reagiu e hoje derruba qualquer político que saia da linha.
Em suma, nossa época pode não ser nenhum modelo de moral coletiva nem de pureza dos costumes, mas está longe de ser a mais imoral de todas.
Não pode competir nem com o final da Antiguidade, com o Renascimento, com o colonialismo e o tráfico negreiro, e nem com situações mais modernas, como a América ao final do século XIX.
O que ocorre - isso sim - é que nossa época é a mais desorientada dos últimos tempos em matéria de valores, princípios, normas de conduta, distinção entre o certo e o errado. E esta desorientação geral e enciclopédica responde pelas confusões, pela insegurança e incapacidade de discernimento que estão na origem das más condutas tanto na vida coletiva quanto na vida pessoal.
"Há muitas pessoas que na realidade não sabem bem a que se ater, não sabem bem o que opinar, aceitam o que se lhes apresenta, aceitam-no sem muito entusiasmo, sem muita força também, com certa apatia ou debilmente, mas aceitam-no" (Julián Marías).
Em outras palavras: nossa época é o lugar dos maiores equívocos de julgamento, das mais gigantescas mistificações ampliadas espetacularmente pela força irresistível e crescente da publicidade, que apresenta a mentira como verdade, o duvidoso como certo, o sem valor como valioso, operando nas cabeças a lavagem cerebral que as torna incapazes de decidir com autenticidade e responsabilidade por suas opções em qualquer campo.
Pense-se no fenômeno nazista, por exemplo. Sem aliança entre a mistificação e a publicidade oficial, Hitler não teria levado ao delírio e à loucura um país inteiro da mais alta e criativa cultura, como a Alemanha.
Mas não é preciso chegar a extremos tão violentos e sanguinolentos como foi o nazismo. Por exemplo, desde que o mundo é mundo, sempre se acreditou que o certo, o bom, o normal é o que a maioria pensa, faz e decide. Acontece que a força e a extensão da publicidade, da mídia, veio potenciar desmedidamente esta crença, consagrando a ideia de que o certo e o errado é a maioria que decide. Na mídia qualquer manifestação massiva e ruidosa de uma minoria agiganta-se como expressão irresistível da maioria.
Assim, a passeata anual do orgulho gay induz a acreditar que os gays são maioria esmagadora em nossa sociedade, quando não passam de uma minoria com muito poder de fogo. O mesmo se diga das passeatas pela legalização da maconha. Uma maioria? Não, uma simples minoria fazendo muito barulho.
A mistificação está posta, orquestrada pela mídia: o critério da maioria é a medida da verdade e a própria expressão da realidade. As pessoas guiam sua vida, não a partir de seu próprio e mais autêntico discernimento, e sim daquilo que "todo-o-mundo faz". Se outros mentem para tirar vantagem, por que eu também não minto? Se meus amigos e vizinhos enganam e roubam, por que não eu?
Este é o clima de nosso tempo: se é preciso violar todas as normas para tirar vantagem, e se a mídia e a TV mostram isso a toda hora, eu tenho que dançar conforme a música e tudo bem. "Ou restaure-se a moralidade, ou nos locupletemos todos." Antes de chamar a isso imoralidade e corrupção, pura e simples, seria melhor dizer desorientação, falta de rumo, de norte, devido à quebra da taboa de crenças e valores que orientam e alimentam a concórdia ou o pacto social.
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Gilberto de Mello Kujawski*- Ex-promotor de Justiça. Escritor e jornalista
Generalizou-se a impressão de que a nossa época seria particularmente imoral e corrupta, com tantos escândalos de conduta explodindo todos os dias e em todo lugar. Um breve recorrido histórico mostra que não é assim.
Na antiguidade, ao final do império romano, nenhuma instituição ficou em pé, todas solapadas pelo maior tsunami nunca visto de corrosão e depravação dos costumes. Tudo era movido à propina, na administração, no senado, nos tribunais, no exército, na religião.
Na Renascença, período de transição da idade média para os tempos modernos, países como a Itália eram dominados por uma orgia de devassidão e violência, da qual nem a Igreja escapou, com o honorabilíssimo papa Alexandre VI, da família Borgia, e seus filhos César e Lucrecia, refinados intrigantes e assassinos de implacável crueldade.
Não falemos na Espanha, Portugal e Holanda ao tempo das navegações e domínio dos novos territórios no Oriente e nas Américas.
Não mencionemos o tráfico de escravos e o elenco de abominações alimentadas à sombra do comércio negreiro.
Chegando mais perto de nossos dias, poucos levam em conta que ao final do século XIX, o país campeão da desordem moral e da violência foram os Estados Unidos.
Nunca houve frouxidão moral coletiva maior do que a que devastou os USA quando da descoberta do petróleo e da construção das grandes ferrovias leste-oeste. E todos nós tomamos conhecimento, pelo cinema, do que foi a onda de gangsterismo que dominou cidades como Chicago durante a Lei Seca.
Claro que tudo isso mudou. O velho fundo puritano da nação se impôs com força, o Judiciário reagiu e hoje derruba qualquer político que saia da linha.
Em suma, nossa época pode não ser nenhum modelo de moral coletiva nem de pureza dos costumes, mas está longe de ser a mais imoral de todas.
Não pode competir nem com o final da Antiguidade, com o Renascimento, com o colonialismo e o tráfico negreiro, e nem com situações mais modernas, como a América ao final do século XIX.
O que ocorre - isso sim - é que nossa época é a mais desorientada dos últimos tempos em matéria de valores, princípios, normas de conduta, distinção entre o certo e o errado. E esta desorientação geral e enciclopédica responde pelas confusões, pela insegurança e incapacidade de discernimento que estão na origem das más condutas tanto na vida coletiva quanto na vida pessoal.
"Há muitas pessoas que na realidade não sabem bem a que se ater, não sabem bem o que opinar, aceitam o que se lhes apresenta, aceitam-no sem muito entusiasmo, sem muita força também, com certa apatia ou debilmente, mas aceitam-no" (Julián Marías).
Em outras palavras: nossa época é o lugar dos maiores equívocos de julgamento, das mais gigantescas mistificações ampliadas espetacularmente pela força irresistível e crescente da publicidade, que apresenta a mentira como verdade, o duvidoso como certo, o sem valor como valioso, operando nas cabeças a lavagem cerebral que as torna incapazes de decidir com autenticidade e responsabilidade por suas opções em qualquer campo.
Pense-se no fenômeno nazista, por exemplo. Sem aliança entre a mistificação e a publicidade oficial, Hitler não teria levado ao delírio e à loucura um país inteiro da mais alta e criativa cultura, como a Alemanha.
Mas não é preciso chegar a extremos tão violentos e sanguinolentos como foi o nazismo. Por exemplo, desde que o mundo é mundo, sempre se acreditou que o certo, o bom, o normal é o que a maioria pensa, faz e decide. Acontece que a força e a extensão da publicidade, da mídia, veio potenciar desmedidamente esta crença, consagrando a ideia de que o certo e o errado é a maioria que decide. Na mídia qualquer manifestação massiva e ruidosa de uma minoria agiganta-se como expressão irresistível da maioria.
Assim, a passeata anual do orgulho gay induz a acreditar que os gays são maioria esmagadora em nossa sociedade, quando não passam de uma minoria com muito poder de fogo. O mesmo se diga das passeatas pela legalização da maconha. Uma maioria? Não, uma simples minoria fazendo muito barulho.
A mistificação está posta, orquestrada pela mídia: o critério da maioria é a medida da verdade e a própria expressão da realidade. As pessoas guiam sua vida, não a partir de seu próprio e mais autêntico discernimento, e sim daquilo que "todo-o-mundo faz". Se outros mentem para tirar vantagem, por que eu também não minto? Se meus amigos e vizinhos enganam e roubam, por que não eu?
Este é o clima de nosso tempo: se é preciso violar todas as normas para tirar vantagem, e se a mídia e a TV mostram isso a toda hora, eu tenho que dançar conforme a música e tudo bem. "Ou restaure-se a moralidade, ou nos locupletemos todos." Antes de chamar a isso imoralidade e corrupção, pura e simples, seria melhor dizer desorientação, falta de rumo, de norte, devido à quebra da taboa de crenças e valores que orientam e alimentam a concórdia ou o pacto social.
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Gilberto de Mello Kujawski*- Ex-promotor de Justiça. Escritor e jornalista